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Nota do GT de Conservação da SBPr

Nota técnica GT Conservação

Nota do Grupo de Trabalho de Conservação da Sociedade Brasileira de Primatologia sobre os impactos negativos da Medida Provisória (1150/2022) que altera a legislação ambiental brasileira

O documento em PDF pode ser baixado aqui

 

A Câmara dos Deputados aprovou, em 30 de março de 2023, a partir de proposta apresentada pelo governo do ex-presidente Jair Bolsonaro, a medida provisória 1150/2022, a qual flexibiliza as regras para utilização dos recursos naturais da Mata Atlântica, bioma já devastado e reduzido a menos de 15% da área original.

A lei de proteção à Mata Atlântica foi criada em 2006 (Lei no. 11.428) e estabelece a Mata Atlântica como patrimônio nacional na Constituição Federal. Em maio de 2012, um novo Código Florestal foi promulgado (Lei no. 12.651), com a intenção de regularizar áreas destinadas à Áreas Preservação Permanente (APPs) em zonas rurais ou urbanas. No Código Florestal, o Cadastro Ambiental Rural (CAR) e o Programa de Regularização Ambiental (PRA) preveem que os órgãos ambientais estaduais delimitem a localização de cada imóvel rural e estabeleçam as medidas necessárias para adequação ambiental (Pinto et al. 2022). Assim, as propriedades rurais passaram a ser regularizadas pelo PRA com o compromisso de manter matas nativas, recuperar ou recompor suas áreas degradadas (Brasil, 2006, Brasil, 2012).

No entanto, em comparação com os deveres de proteção e restauração observados no antigo Código Florestal (Lei no. 4.771/1965), a lei atual (12.651/2012) reduziu em 87% as áreas de restauração em topo de morro e em 58% a área total destinada à restauração no Brasil (Soares-Filho et al. 2014). Além disso, segundo a SOS Mata Atlântica, as florestas em regeneração––teoricamente ainda protegidas pelo Código Florestal de 2012––já vêm sendo desmatadas em média a cada oito anos, principalmente pela expansão agrícola.

E, caso a medida provisória 1150/2022 seja aprovada no Senado Federal, a Mata Atlântica perderá ainda mais proteção legal com a clara intenção de flexibilizar do desmatamento, pois:

  1. Permite que florestas primárias e em estágio avançado de regeneração sejam desmatadas sem necessidade de estudo de viabilidade e parecer técnico;
  2. Remove a necessidade de avaliação técnica dos órgãos ambientais competentes, principalmente em margens de rios e em áreas urbanas;
  3. Permite que os conselhos municipais de meio ambiente definam os tamanhos das áreas a serem desmatadas sem a exigência de qualquer critério técnico e científico;
  4. Remove a exigência de medidas compensatórias em caso de construção de empreendimentos lineares e;
  5. Remove a necessidade de estudos de impactos ambientais e do resgate de animais silvestres afetados pela construção de empreendimentos lineares.

Assim, a medida provisória gera conflito de interesses ao abrir precedente para que a decisão a respeito do desmatamento fique a cargo do proprietário de terras ou do agente empreendedor. Ou seja, indivíduos e empresas poderão, individualmente, decidir sobre como serão utilizados os recursos naturais da Mata Atlântica, incluindo as espécies vegetais, animais e os serviços ecossistêmicos, os quais são de propriedade e usufruto do povo brasileiro.Mais ainda, com a retirada da necessidade de estudos de impacto ambiental e de parecer técnico dos órgãos ambientais competentes sobre o desmatamento e a construção em áreas florestais, essa decisão ficará desamparada de qualquer garantia de avaliação com rigor técnico- científico. Além dos impactos negativos para a biodiversidade e serviços ecossistêmicos, a ausência de regulamentação para o desmatamento de florestas em margens de rios causará impactos negativos na disponibilidade e ciclagem da água para a população e, ao flexibilizar o desmatamento de florestas primárias e em estágio avançado de regeneração––as quais via de regra estão localizadas em encostas de morros––deverão haver novos casos de deslizamentos e acidentes, causando prejuízos individuais e aos cofres públicos para atendimento de saúde, infraestrutura e defesa civil.

O regramento atual já flexibiliza o desmatamento em áreas urbanas onde existe uma ocupação prévia, ou seja, em áreas de ocupação consolidadas. Portanto, não há razão técnica para a flexibilização do desmatamento na Mata Atlântica. Além disso, a medida provisória ainda flexibiliza o tamanho das áreas que podem ser desmatadas, decisão que passaria aos conselhos municipais, com interesses difusos, e não necessariamente obedecerão a critérios técnicos e científicos.

A medida provisória também terá um impacto negativo profundo em uma das melhores e mais consolidadas leis de proteção ambiental no Brasil, o Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC). Com a nova medida, a decisão sobre o tamanho das áreas e o tipo de uso permitido ao redor das unidades de conservação é retirada dos técnicos dos órgãos ambientais.

Outro resultado previsto das aplicações da MP 1150/2022 é o aumento do risco de extinção das espécies vegetais e animais da Mata Atlântica. A MP desconsidera a perda dos benefícios intangíveis da manutenção da conectividade de florestas. A Mata Atlântica é um dos 34 “hotspots” mundiais de biodiversidade, com 21 espécies e subespécies de primatas presentes no bioma, dos quais 18 espécies são endêmicas, ou seja 78% das espécies primatas da Mata Atlântica dependem do bioma para sobrevivência. A conectividade dessas áreas para primatas ficará ainda mais reduzida (Rotta et al. 2016). Essa redução aumentará o isolamento das espécies, que já vivem ilhadas em fragmentos de florestas sem conexão.

Esse cenário é de preocupação para a proteção e sobrevivência das espécies endêmicas, mas também preocupa o potencial aumento do contato dos primatas com a população humana em ambientes urbanos e rurais, que pode elevar o risco de epidemias de zoonoses e epizootias (Golstein et al. 2022). Uma grande parte dos estudos atuais mostra que as doenças zoonóticas podem afetar a população humana e provocar pandemias, como aconteceu com a COVID-19; a maioria dessas transmissões é provocada ocupação da terra em áreas florestais sem considerar políticas de meio ambiente que limitem o contato entre a população humana e as espécies silvestres (Golstein et al. 2022).

Diante do exposto e, considerando que interesses econômicos de indivíduos e empresas não podem sobrepujar a qualidade de vida e os recursos naturais do povo brasileiro, a Sociedade Brasileira de Primatologia manifesta sua posição contrária à aprovação desta medida provisória pelo Senado Federal. Exortamos o Congresso Nacional a consultar os órgãos ambientais competentes, técnicos e comunidade científica para um amplo debate antes de qualquer flexibilização do desmatamento em qualquer bioma no Brasil ou em mudanças na legislação ambiental vigente.

Andrea Presotto e Rodrigo Costa-Araújo, Coordenadores do GT Conservação da SBPr
Patrícia Izar, Presidente da SBPr

Referências

Brasil. Lei no 12.651 de 25 de maio de 2012. Dispõe sobre a proteção da vegetação nativa; altera as Leis nos 6.938, de 31 de agosto de 1981, 9.393, de 19 de dezembro de 1996, e 11.428, de 22 de dezembro de 2006; revoga as Leis nos 4.771, de 15 de setembro de 1965, e 7.754, de 14 de abril de 1989, e a Medida Provisória no 2.166-67, de 24 de agosto de 2001; e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasilia, 28 maio 2012.

Goldstein JE, Budiman I, Canny A, Dwipartidrisa D. Pandemics and the human-wildlife interface in Asia: land use change as a driver of zoonotic viral outbreaks. Environmental Research Letters. 2022 Jun 10;17(6):063009.

Pinto LF, Metzger JP, Sparovek G. Produção de Alimentos na Mata Atlântica. 2022.

Rotta L, Viani RA, Rosário V. Mudanças nas leis florestais e o impacto na restauração florestal e conectividade na paisagem. Revista Ciência, Tecnologia & Ambiente. 2016;4(1):12-9.

Soares-Filho B, Rajão R, Macedo M, Carneiro A, Costa W, Coe M, Rodrigues H, Alencar A. Cracking Brazil’s forest code. Science. 2014 Apr 25;344(6182):363-4.

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